Por Eduardo Fontenele
São Cipriano, paradoxalmente, foi um bruxo
temido e um santo católico, tudo em uma única pessoa. Uma vida regada a
perversões, ocultismo e uma estreita relação com Lúcifer e Satanás. Já Rodolfo
Abrantes foi vocalista e compositor da banda de rock brasileira Raimundos, hoje
é pastor de uma igreja evangélica. O que os dois têm em comum? Só uma vida de
libertinagem e uma conversão posterior ao cristianismo para expurgar o passado.
Cipriano, ou Tascius Caecilius Cyprianus, era
também conhecido por “O Bruxo” ou “O Feiticeiro”, nasceu em 250 d. C., na
Antioquia, região situada entre a Síria e a Arábia Saudita, pertencente ao
governo da Fenícia. Desde muito jovem teve sua vida direcionada para o estudo
do ocultismo. Aos 30 anos foi estudar com a bruxa Évora, esta faleceu, devido à
idade avançada, e lhe deixou como herança seus manuscritos, nos quais ele se
debruçou e aperfeiçoou seus conhecimentos sobre magia negra. Cipriano era
versado em alquimia, astrologia, adivinhação, numerologia hebraica, feitiçaria,
invocação de espíritos e rituais de sacrifício.
Certo dia, um jovem rico de nome Aglaide, que
se encontrava apaixonado por uma jovem bela, e igualmente rica, chamada Justina,
lhe procurou para que o bruxo fizesse um trabalho de feitiçaria para forçar
Justina a casar-se com ele. Justina era uma moça de fé inabalável em Deus e que
decidira não se entregar a homem nenhum. Cipriano fez inúmeras tentativas de
persuadir a jovem através de magia negra, mas esta sempre se defendeu com orações
e o sinal da cruz. Desiludido com a derrota inédita em sua carreira como
ocultista respeitado, Cipriano perdeu a convicção em seu poder e decidiu
tornar-se cristão.
Cipriano passou de pecador a entusiasta da fé
católica. O Imperador romano chamado Diocleciano, que costumava perseguir
cristãos, mandou aprisioná-lo e torturá-lo até que negasse sua fé. Assim como
Justina também fora aprisionada e torturada. Não importava que tipo de tortura
fosse empregada, os dois prisioneiros sempre se mantinham íntegros em suas
convicções. Derrotado pela resistência pacífica dos dois cristãos, o imperador
ordenou que fossem decapitados em 26 de Setembro de 304 d. C. Os dois mártires
foram considerados santos após suas mortes. São Cipriano deixou como legado o
livro escrito antes de sua conversão, o Livro
de São Cipriano de Capa Preta, um tratado de magias branca e negra.
Onde quero chegar com toda essa explanação
sobre a vida de São Cipriano? O objetivo é fazer um paralelo com a vida do
roqueiro brasileiro, ainda que Rodolfo não seja exatamente católico e sim
evangélico, nem tenha se desvirtuado tanto do bom caminho como o santo controverso.
O roqueiro nasceu em Brasília em 20 de
setembro de 1972, filho de médicos paraibanos, seu nome completo é Rodolfo
Gonçalves Leite de Abrantes, cresceu sob a influência de duas culturas, a
música dos punks norte-americanos Ramones e o forró do cantor e sanfoneiro
pernambucano Zenilton. As letras de Zenilton são caracterizadas pelo duplo sentido,
pelos trocadilhos sexuais, pelo humor e malícia.
Na adolescência, em 1987, Rodolfo fundou o
Raimundos junto com seu vizinho e amigo Digão, que inicialmente tocava bateria
ao invés da guitarra, para o baixo chamaram Canisso. Rodolfo tocava guitarra e
cantava. A banda tocava apenas covers dos Ramones, depois passaram a compor seu
próprio repertório autoral. Nascia o forrocore. A estreia foi na passagem do
ano de 1988, na casa do amigo dos integrantes Gabriel Thomaz (atualmente líder
da banda Autoramas). A banda se dissolveu em 1990.
Em 1992 a banda retornou do hiato de dois
anos, mas faltava um baterista fixo, já que Digão enveredara para a guitarra por
causa de problemas auditivos e Rodolfo agora estava só nos vocais. Estavam
utilizando-se de uma bateria eletrônica. Decidiram recrutar para a bateria um
fã da banda, Fred, assim se deu a formação clássica da banda.
ENVOLVIMENTO
COM AS DROGAS E LETRAS IRÔNICAS FIZERAM PARTE DA TRAJETÓRIA DA BANDA
Era a década de 90 e o rock brasileiro
renascia após a ressaca provocada pelos excessos da geração passada. Na geração
pós-ditadura, a de 80, as drogas, principalmente a cocaína, tiveram um
protagonismo que definiu o estilo de vida dos astros do rock nacional. Lobão, Ritchie,
Arnaldo Antunes (Titãs), Nando Reis (idem), João Gordo (Ratos de Porão), Cazuza
(Barão Vermelho), Dinho Ouro Preto (Capital Inicial), Nasi (Ira!), Renato Russo
(Legião Urbana), entre outros, foram usuários contumazes de drogas e quase se
afundaram devido ao vício. Com Rodolfo foi um coquetel que embalou suas
noitadas, o músico utilizou-se de ecstasy, cocaína, maconha e LSD.
As letras do Raimundos faziam apologia ao
sexo promíscuo, à pornografia, ao machismo, às drogas, à coisificação da
mulher, os palavrões eram fartamente empregados e havia a predominância de
conteúdo autobiográfico, tudo amarrado com muito humor, e uma pegada hardcore punk
na parte instrumental. Como neste trecho da canção Puteiro em João Pessoa, presente no álbum de estreia da banda,
intitulado simplesmente de Raimundos
(1994):
♫ Meu primo me olhou de lado e disse:
"coitado"
Era uma quenga fedorenta, daquelas das mais nojentas
Mas se você não aguenta, você leva para o quarto
Ela pegou no meu pau, pôs a boca e depois ficou de quatro
Era uma quenga fedorenta, daquelas das mais nojentas
Mas se você não aguenta, você leva para o quarto
Ela pegou no meu pau, pôs a boca e depois ficou de quatro
Foi num puteiro em João Pessoa
Descobri que a vida é boa
Foi minha primeira vez♫
Descobri que a vida é boa
Foi minha primeira vez♫
Há também a letra ainda mais explícita de Selim, também do álbum de estreia da banda:
♫ Eu queria ser o banquinho da bicicleta
Pra ficar bem no meio das pernas
E sentir o seu ânus suar
Eu queria ser a calcinha daquela menina
Pra ficar bem perto da vagina
E às vezes até me molhar
Mas eu não sei o que se passa nesta cabecinha
É claro que era da minha
Você não pode duvidar
fica quieto
Não me deixe envergonhado
Pois se eu ficar excitado
Minha calça vai estourar♫
Pra ficar bem no meio das pernas
E sentir o seu ânus suar
Eu queria ser a calcinha daquela menina
Pra ficar bem perto da vagina
E às vezes até me molhar
Mas eu não sei o que se passa nesta cabecinha
É claro que era da minha
Você não pode duvidar
fica quieto
Não me deixe envergonhado
Pois se eu ficar excitado
Minha calça vai estourar♫
E este trecho da escatológica Reggae do Manêro, um dos clássicos da
banda, do álbum MTV ao Vivo (2000), o
último disco do Raimundos com a participação de Rodolfo. Como o título da canção evidencia, trata-se de um reggae, um
ritmo atípico no repertório da banda:
♫ Ô mãe! Vê se me manda um dinheiro
Que eu tô no banheiro
E não tem nem papel pra cagar
Ô mãe! Esse seu filho é maneiro
Aqui no estrangeiro nenhuma mulher
Quer me dar♫
Que eu tô no banheiro
E não tem nem papel pra cagar
Ô mãe! Esse seu filho é maneiro
Aqui no estrangeiro nenhuma mulher
Quer me dar♫
Em junho de 2001, Rodolfo virou evangélico, entrou
para a igreja Bola de Neve, influenciado por sua esposa Alexandra Horn, e
abandonou o Raimundos. Atualmente, com uma nova formação, a banda luta para permanecer
em evidência no cenário nacional, após um passado de glórias, sendo citada como
uma referência por muitas outras bandas surgidas depois dela.
Após sua saída da banda, Rodolfo formou o
Rodox, que lançou dois discos, Estreito
(2002) e Rodox (2003), mas não
vingou, pois os outros integrantes da banda não concordaram em se converter à
sua fé. Hoje, Rodolfo, além de comandar o culto em sua igreja, é palestrante e
mantém uma carreira como artista gospel solo. Nas horas vagas, pega onda nas
praias de Balneário Camboriú (SC), onde vive hoje.
HOMENS
DE FASES, FÉ E POLÊMICAS
Recentemente houve uma troca de farpas entre
Rodolfo e seus ex-colegas de banda Digão e Canisso, após a publicação de uma
entrevista de Rodolfo para a revista Trip,
Rodolfo se declarou arrependido de ter escrito as principais letras do
Raimundos e da vida que levava na época em que liderou a banda, causando
revolta por parte dos atuais líderes da banda, como Digão, que desabafou no Facebook, irritado:
“100% arrependido’ mas usufruindo 100% da sua parte dos direitos autorais e que não é uma ‘merreca’ que ele gosta de falar para os desinformados... Se ele pode se dar ao luxo de sair de casa pra ‘trabalhar’ e não receber nada, quem banca isso?! O Raimundos é claro, a sua eterna previdência privada, assim como o chamariz de seus testemunhos ‘Eterno ex-Raimundos’. (...) Sem contar o fato dele não ter respeitado os nossos direitos quando saiu da banda, o que me cansa é essa insistência em associar o Raimundos às coisas ruins e o seu uso de pó e outras drogas pesadas em sua vida! Amparado pela verdade e Deus é minha testemunha, isso foi fora do Raimundos com as ‘nega’ dele! Muito me admirei quando vi suas declarações, pois nunca tinha visto isso dentro da banda!” Fonte: http://wiplash.net/materias/news 814/205059
Rodolfo respondeu em comunicado oficial
publicado pela mesma publicação onde havia dado as declarações anteriores,
desculpando-se por suas declarações:
“Nunca foi minha intenção denegrir, expor ou
culpar qualquer pessoa pelos problemas que tive no passado que não fosse eu.
Por isso, minhas sinceras desculpas aos fãs e integrantes do Raimundos, que
possam ter levado para esse lado. (...) Na cultura do ambiente cristão,
arrependimento verdadeiro significa basicamente duas coisas. Primeiro, não
voltar a fazer o que fazia. Jesus disse isso pra muitas pessoas, ‘vá, e não
peques mais’. A segunda é, mostre frutos de arrependimento, ou seja, ‘faça diferente’.
Quando disse estar ‘100% arrependido das músicas que escrevi’, foi nesse
sentido, pois é isso que tenho tentado cumprir como alguém que crê em Jesus.
Arrependimento verdadeiro não é remorso, ele não aponta pro passado numa
tentativa inútil de tentar apagá-lo. Ele aponta pro futuro, tipo ‘daqui por
diante, bola pra frente’. Meu maior arrependimento é o de ter tido, por um
período de tempo, uma geração me ouvindo, e não tê-la edificado como gostaria,
pois, naquela época, eu não tinha o entendimento que tenho hoje.”
Canisso declarou em seu Twitter:
“Uma puta contradição,
a gente rala pra caralho pra manter a banda em evidência e pingar um dinheiro
de direito autoral na conta do infeliz. Pro cara pagar de
surfista-pastor-popstar arrependido de Camboriú... devia ter a humildade de
demonstrar agradecimento (...) Passam os anos e nada, nosso Rodolfo morreu
mesmo... Triste, não conheço esse parvo aí! (...)”
Agora Rodolfo esclarece a questão dos
direitos autorais e de como se mantém financeiramente em sua nova vida:
“Sinto
também que devo, de forma abreviada, explicar como recebo direitos autorais.
Desde 1994 recebo royalties pelas canções que escrevi ou tive participação. Sou
compositor e essa é minha principal fonte de renda. É lícito, é digno, me
permite pagar tributos e me permite servir à igreja voluntariamente, por amor e
sem precisar cobrar altos cachês.”
Fonte: Raimundos: Comunicado oficial de
Rodolfo Abrantes sobre polêmicas http://wiplash.net/mateiras/news 814/205140-raimundos.html#ixzz36n3pViB2
Digão o chamou de hipócrita e rebateu:
“Se o
Rodolfo não se lembra, os fãs menos ainda porquê tudo o que ele fez fora do
Raimundos não tocou ou toca em rádio. Shows em cultos como os que ele faz o
ECAD também não recolhe, pois igrejas não pagam impostos, eu liguei pra
conferir. O grosso do que ele recebe (95% pra mais) vem do Raimundos, portanto,
o Rodolfo dizer de cara lavada ‘eu não vivo às custas do Raimundos’ só eleva a
hipocrisia dele a níveis astronômicos...”
A resposta de Rodolfo, dizendo-se perseguido por causa de sua fé:
“Também entendo que num país onde vivemos uma
declarada perseguição religiosa (e todo esse barulho é 100% por causa da minha
fé) é quase que prazeroso chamar um cristão de hipócrita. Nada que eu nunca
tenha ouvido, aliás, há 13 anos é o mais leve que ouço. Não sou, nem tento
passar a ideia de alguém perfeito. Sou, sim, um pecador que é totalmente
dependente da misericórdia de Deus. Espero melhorar com o tempo, e peço ao
Senhor que me dê mais sabedoria quando falar”.
Fonte: http://revistatrip.uol.com.br/so-no-site/notas/rodolfo-abrantes-responde-criticas.html
Rodolfo concluiu, sem rancor:
“Desejo uma vida longa ao Canisso a ao
Rodrigo. Vocês podem pensar o que quiserem de mim, mas nunca vão se livrar das
orações que faço, e continuarei fazendo, em favor de vocês.”
Fonte: http://revistatrip.uol.com.br/so-no-site/notas/rodolfo-abrantes-responde-criticas.html
A polêmica com os antigos colegas está servindo mais para recolocar a
banda nas manchetes e para divulgar a nova carreira do agora artista
solo/pastor Rodolfo do que para criticar esse ou aquele estilo de vida.
Ao que parece, tanto São Cipriano quanto Rodolfo enfrentaram
dificuldades em sua passagem da vida mundana para a ascética, devido à
intolerância (no caso do santo católico) e devido ao seu passado (no caso do
músico).
*Um agradecimento especial a Laila Araújo Coelho pelas críticas
pertinentes e por me instigar a reescrever este texto e melhorá-lo, enfatizando
a clareza e a precisão das informações.